Informar de modo a permitir que compreendam por si os princípios metafísicos que estão por trás de todos os eventos bons e ruins que se manifestam em nossa realidade; princípios ocultos que estão enterrados debaixo de muito entulho político-religioso; econômico-social; histórico-cultural.
segunda-feira, 17 de agosto de 2020
Alguém ainda se espanta com os números Datafolha de Bolsonaro?
Cinema Secreto: Cinegnose
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Cinema Secreto: Cinegnose
Alguém ainda se espanta com os números Datafolha de Bolsonaro?
Posted: 16 Aug 2020 05:34 PM PDT
Os números do último Datafolha mostram que Bolsonaro bateu seu recorde de popularidade apesar dos mais de 100 mil mortos pela pandemia e as informações diárias sobre as “rachadinhas” do seu clã. Quem se espanta? Se os 150 reais do Bolsa Família deram certos por que não os 600 do auxílio emergencial? Só que não! Pelo menos não através das leituras apressadas e preconceituosas sobre um povo supostamente ignorante que se deixaria comprar. Como sempre, a Globo coloca a culpa nos nordestinos e a esquerda na “ignorância e alienação”. Mas uma pista para entender em profundidade esses números começa em uma matéria de 2016 do jornal “El País”: num bairro periférico de São Paulo, Lula e Doria Jr eram igualmente considerados “trabalhadores que começaram por baixo”. E se nunca tivemos um governo “de esquerda”? E se os motivos que elegeram Lula também foram os mesmos que levaram ao poder a extrema-direita de Doria e Bolsonaro? Será que a ideologia do mérito-empreendedorismo é a verdadeira motivação psicológica do auxílio emergencial numa sociedade precarizada e, finalmente, uberizada? Essa é a matéria-prima das operações psicológicas da atual extrema-direita – “alt-right”.
“... Votei no Doria pelo histórico dele, por ele ter começado de baixo, como o Lula... ele é um trabalhador e convenceu a classe trabalhadora”, afirmou o gráfico Domingos Araújo, morador do bairro José Bonifácio, no extremo da Zona Leste, São Paulo.
Em reportagem da edição brasileira do El País de 2016, foram ouvidos os moradores do bairro periférico que em 2012 havia votado em Fernando Haddad, do PT, e naquelas eleições à Prefeitura apoiaram Doria com 44% dos votos - clique aqui.
Para além da imagem que Doria passou na campanha eleitoral de ser antes um gestor do que um político, houve algo de mais “anômalo” na matéria do veículo noticioso: ver Lula interpretado pelo povo como uma espécie de metalúrgico self made man? Será que, então, poderíamos dizer que para o povão Lula nunca foi um político? Teria sido esse a razão do triunfo de Lula? Assim como Doria Jr?... ou assim como Bolsonaro, um verdadeiro meme Thug Life 3D?
Portanto, não deveríamos nos espantar com os números do novo Datafolha – Bolsonaro bateu seu recorde de popularidade dentro da série histórica do instituto: sua aprovação foi a 37% (32% na pesquisa anterior), enquanto o índice de rejeição despencou dez pontos (de 44% a 34%). Isso, em meio à agenda midiática dos mais de 100 mil mortos pela COVID-19 e revelações quase diárias sobre o envolvimento da família com rachadinhas, milicianos, depósitos estranhos na conta da primeira-dama e muito dinheiro em espécie suspeito pagando boletos.
Suspeita vertiginosa: e se nunca tivemos um governo “de esquerda”? E se os motivos que elegeram Lula também foram os mesmos que levaram ao poder a extrema-direita de Doria e Bolsonaro? Lembre-se, caro leitor, que na versão “paz e amor” de Lula vitoriosa em 2002 nada colava: para desespero dos colunistas e analistas da mídia corporativa, escândalos como o mensalão, caos aéreo etc., não contaminavam sua imagem que só crescia nas pesquisas de opinião. Foram necessárias muitas bombas semióticas e lawfare para pará-lo, e impedi-lo de fazer novos sucessores.
Sob o projeto geopolítico multipolar, soft power e neodesenvolvimentismo, o pragmatismo lulista parecia desideologizar ou despolitizar programas como Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida ou o próprio crescimento da classe C que chegava a shopping centers, aeroportos e universidades – perdeu a oportunidade de fazer uma educação política em massa.
Para o povão, tudo representava conquistas meritocráticas e não política de Estado.
Da mesma forma, nada parece colar na nova versão “paz e amor” de Bolsonaro, desde que viu a janela de oportunidades (mais uma) que a pandemia COVID-19 abriu: deixou para trás o discurso belicoso de a cada final de semana apoiar aqueles que queriam tocar fogo no STF ou fechar o Congresso, para decidir ajudar os desempregados (promovidos a empreendedores pela grande mídia) com o auxílio emergencial – aliás, proposto pela oposição.
Meritocracia ou política de Estado?
O povão é ignorante?
A palavra “Emergencial” tem uma significação bem ambígua: não apenas pela pandemia em si, mas como uma ajuda diante da suposta irresponsabilidade dos governadores que não deixariam o povão “trabalhar”, digo, “empreender”. Bolsonaro ajuda o povão, vítima de governadores (“políticos”) inimigos de pessoas que apenas querem “empreender”.
A leitura mais preconceituosa (inclusive da esquerda) sobre o sucesso da versão “paz e amor” de Bolsonaro é que o povo ignorante está sendo comprado pelo auxílio emergencial – enquanto, de novo, a mídia corporativa joga a culpa nos nordestinos: gente ignorante que mais uma vez foi comprada. Depois do Bolsa Família lulopetista, agora pelo auxílio emergencial.
A analista da Globo News Eliane Catânhede foi quem chegou ao paroxismo: no programa “Em Pauta” da GloboNews, segundo ela o auxílio emergencial teria dado uma certa sensação de “enriquecimento” nos grotões da Zona da Mata nordestina...
O que essas análises não conseguem compreender é que o pragmatismo das massas não considera Bolsonaro como um “pai” que concede benesses. Assim como Lula nunca foi visto pelo povão como um populista que comprou votos criando o Bolsa Família.
Não ocorre é que as pessoas introjetaram a ideologia do mérito-empreendedorismo (transmitida diariamente pela grande mídia a cada MasterChef ou pelas matérias chamadas “inspiradoras” dos telejornais), desde a época das políticas neodesenvolvimentistas dos governos petistas. Essa foi a leitura que fizeram quando se viram entrando em shoppings e universidades. Ideologia que se tornou paradoxalmente ainda mais forte com a precarização e uberização do trabalho nos anos pós impeachment.
Lula foi o metalúrgico que subiu na vida e Bolsonaro é o cara que veste capacete e anda bravamente de moto em plena pandemia, assim como o entregador do Uber Eats.
Como é da natureza da operação psicológica alt-right (Nova Direita), governar é menos propor projetos do que estar sempre combatendo inimigos com os olhos nas próximas eleições. Assim foi Trump nos EUA, às voltas com a ameaça interna de impeachment desde o primeiro dia de “governo”, enquanto enfrentava o “homem-foguete” da Coréia do Norte e a conspiração do “vírus chinês”.
Da mesma forma Bolsonaro, enfrentando os inimigos que não o deixam “governar” – Congresso, STF, emparelhamento comunista no Estado etc.
A contradição da grande mídia
A crise da pandemia abriu uma nova janela de oportunidades, ao criar a falsa oposição Saúde versus Economia. Se o brasileiro está desempregado e não consegue empreender, bote na conta da pandemia, dos governadores e desses malditos cientistas que não sabem o que é não ter um prato de comida na mesa.
Mas principalmente, Bolsonaro parece ter, por assim dizer, pressentido o discurso contraditório da grande mídia: de um lado, defende a agenda neoliberal do Estado Mínimo, teto fiscal e diminuição da carga tributária; por outro, critica a precarização do SUS, exige maior participação do Estado na defesa da Amazônia, na segurança pública e nas periferias dos grandes centros urbanos.
Bolsonaro parece saber que dentro do amplo consórcio militar-judiciário-midiático que o elegeu, a grande mídia (em particular a Globo) é mais realista do que o rei, na ingênua defesa do fundamentalismo neoliberal feita pelos seus analistas, colunistas e editorialistas.
No momento em que Bolsonaro fatura politicamente com o auxílio emergencial, deixando a oposição no vácuo, e aproxima-se do Centrão, a grande mídia começa a dar chiliques amaldiçoando os “fura-tetos” como “ala ideológica” e a equipe econômica como “área técnica” do governo.
Desesperados, analistas econômicos condenam Bolsonaro de estar “traindo” o discurso que o elegeu: uma suposta agenda neoliberal de reformas. Apenas não ocorre de que o que elegeu mesmo Bolsonaro foi o antipetismo e agenda do ódio insuflada pela própria grande mídia que precisava engrossar a massa que apoiaria o golpe de 2016.
Jamais as sacolas de maldades neoliberais ganharam eleições. Por isso, a grande mídia e a conveniente facada em Juiz de Fora evitaram que Bolsonaro abrisse a boca de forma comprometedora em debates na TV. Continuou nas redes sociais com o seu discurso monofásico de ódio, enquanto a agenda do “posto Ipiranga” era ocultada do distinto público.
Mais realistas do que o rei, os “sabujos” analistas da grande mídia (muito mais para cérberos – o mitológico cão que guarda a porta do Inferno - do que cães sabujos) acreditam que a “agenda de reformas estruturantes” vai atrair investimentos e fazer o País retomar a rota do crescimento.
Acontece que a agenda alt-right de Bolsonaro é outra, geopolítica e pessoal:
(a) geopolítica-1: destruição do soft power brasileiro (já concluída com a Lava Jato) e o encerramento das pretensões geopolíticas multipolares que a entrada do país nos BRICS suscitou, além liquidação do projeto brasileiro de liderança latino-americana;
(b) geopolítica-2: fazer rodar as “backdoors” no sistema operacional de Brasília, a verdadeira agenda oculta do neoliberalismo, muito além das “meninas dos olhos” midiáticas das “reformas estruturantes”: reciclar o cassino financeiro, pandemia e controle populacional, além da reengenharia social – sobre isso, clique aqui.
(c) Pessoal: a conquista do Estado por um novo consórcio militar-judicial, mas dessa vez com uma grande mídia sintonizada com as demandas “bala-boi-bíblia”. E longe dessa lorota neoliberal-ambientalista que a Globo agita em seus momentos de freakouts. Agora ameaçada pelas delações que envolvem corrupção e lavagem de dinheiro feitas pela delação premiada do doleiro Dario Messer.
Enquanto lacra nas redes sociais a falta de educação de Romero Britto e a destruição da sua escultura, resta à esquerda esperar a chegada do fundo do poço da crise econômica, a implosão da ideologia do mérito-empreendedorismo e o retorno da luta de classes como o real horizonte de eventos para as massas e uma verdadeira agenda política.
É a economia e a luta de classes, estúpido!
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sábado, 15 de agosto de 2020
O dia em que Bolsonaro decidiu mandar tropas para o Supremo
DEBATE BRASIL: O dia em que Bolsonaro decidiu mandar tropas para o Supremo
Adicionar estrela Ermelinda Maria Dias Coelho 14 de agosto de 2020 07:55
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REVISTA PIAUI
HTTPS://PIAUI.FOLHA.UOL.COM.BR/MATERIA/VOU-INTERVIR/#
EDIÇÃO 167 | AGOSTO_2020
questões da ultradireitaVOU INTERVIR!O dia em que Bolsonaro decidiu mandar tropas para o Supremo
MONICA GUGLIANO
Bolsonaro, cavalgando em Brasília, nove dias depois da reunião do golpe: ao explicar como se inicia uma ditadura, Zero Três disse que é fundamental “dissolver a Suprema Corte”
Bolsonaro, cavalgando em Brasília, nove dias depois da reunião do golpe: ao explicar como se inicia uma ditadura, Zero Três disse que é fundamental “dissolver a Suprema Corte” CREDITO: PEDRO LADEIRA_FOLHAPRESS
Atemperatura em Brasília não passou de 27ºC naquela sexta-feira, mas o ambiente estava tórrido no gabinete presidencial, no Palácio do Planalto. Ainda pela manhã, Jair Bolsonaro fora informado que o ministro Celso de Mello, o decano do Supremo Tribunal Federal, consultara a Procuradoria-Geral da República para saber se deveria ou não mandar apreender o celular do presidente e do seu filho Carlos Bolsonaro. Era uma formalidade de rotina, decorrente de uma notícia-crime apresentada por três partidos, mas a mera possibilidade de que seu celular viesse a ser apreendido deixou Bolsonaro transtornado. No seu gabinete, a reunião das 9 horas começou com um pequeno atraso. Estavam presentes dois generais: o ministro-chefe da Casa Civil, Walter Braga Netto, e o ministro-chefe da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos. O terceiro general a participar do encontro, Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, achando que aquele 22 de maio de 2020 seria um dia tranquilo, marcara uma consulta médica na parte da manhã. Foi o último a chegar à reunião. Agitado, entre xingamentos e palavrões, o presidente saiu logo anunciando sua decisão:
– Vou intervir! – disse.
Bolsonaro queria mandar tropas para o Supremo porque os magistrados, na sua opinião, estavam passando dos limites em suas decisões e achincalhando sua autoridade. Na sua cabeça, ao chegar no STF, os militares destituiriam os atuais onze ministros. Os substitutos, militares ou civis, seriam então nomeados por ele e ficariam no cargo “até que aquilo esteja em ordem”, segundo as palavras do presidente. No tumulto da reunião, não ficou claro como as tropas seriam empregadas, nem se, nos planos de Bolsonaro, os ministros destituídos do STF voltariam a seus cargos quando “aquilo” estivesse “em ordem”. A essa altura, ele já tinha decidido também que não entregaria seu celular sob hipótese alguma, mesmo que tivesse que descumprir uma ordem judicial. “Só se eu fosse um rato para entregar meu celular para ele”, disse, fazendo uma comparação que voltaria a usar, em público, no transcorrer do dia.
– Vou intervir! – repetiu.
Apesar da extrema gravidade do anúncio, o general Luiz Eduardo Ramos, amigo de Bolsonaro há mais de quatro décadas, recebeu bem a intenção do presidente de partir para um confronto de desfecho catastrófico. Achava que intervir no Supremo era, de fato, a única forma de restabelecer a autoridade do presidente, que vinha sendo abertamente vilipendiada pelo tribunal. No seu raciocínio, a decisão do ministro Alexandre de Moraes, do STF, que proibira a posse de Alexandre Ramagem como diretor-geral da Polícia Federal, já tinha sido um abuso inaceitável. Braga Netto e Augusto Heleno concordavam que Moraes fora longe demais. Também achavam que a decisão do ministro fora uma interferência inadmissível em ato soberano do presidente, mas tinham dúvidas sobre a forma e as consequências de uma intervenção. A certa altura, o general Heleno tentou contemporizar e disse ao presidente:
– Não é o momento para isso.
A piauí reconstituiu os detalhes da reunião com quatro fontes que pediram anonimato para não contrariar o presidente. Duas delas testemunharam a reunião. O clima era tenso, as pessoas entravam e saíam do gabinete presidencial, enquanto os garçons, aparentemente alheios ao ambiente carregado, serviam água e café preto, com as opções de açúcar, adoçante ou leite em pó. Entre a decisão de Bolsonaro de intervir no STF e o conselho apaziguador de Heleno, deu-se um debate sobre como a intervenção poderia acontecer legalmente. Apesar da brutalidade autoritária de uma intervenção, havia a preocupação de manter as aparências de uma medida dentro da lei.
A reunião prolongou-se e acabou se fundindo com a reunião seguinte, prevista para as 10 horas na agenda presidencial. Os participantes do compromisso das 10 horas – os ministros André Mendonça (Justiça) e Fernando Azevedo (Defesa), além de José Levi, titular da Advocacia-Geral da União – se incorporaram à discussão de como dar legalidade a uma eventual intervenção. A conversa girou em torno do artigo 142 da Constituição.
No dia 28 de maio, o jurista Ives Gandra da Silva Martins, de 85 anos, publicou um artigo no Consultor Jurídico, um site de notícias jurídicas. O título do artigo já mostrava a tese central: Cabe às Forças Armadas Moderar os Conflitos entre os Poderes. O jurista dizia que o artigo 142 da Constituição permite que qualquer dos três poderes, caso se sinta “atropelado por outro”, peça que as Forças Armadas “ajam como poder moderador” com o objetivo de restabelecer “a lei e a ordem”. A ideia do jurista não era propriamente uma novidade, mas a publicação do artigo ajudou a dar visibilidade a uma tese que já circulava no meio militar e, nos últimos tempos, vinha aparecendo nas manifestações que a militância bolsonarista promove habitualmente contra o Congresso e o Supremo.
A interpretação de que as Forças Armadas têm o papel equivalente ao de um “poder moderador” encontra terreno nos clubes militares e entre oficiais da reserva, mas costuma ser rechaçada pelo alto-comando das armas. Em 2016, o professor Dehon Padilha Figueiredo, do Quadro Complementar de Oficiais do Exército, e o oficial do Exército Renato Rezende Neto publicaram um estudo jurídico cujo título é o seguinte: Direito Operacional Militar: Análise dos Fundamentos Jurídicos do Emprego das Forças Armadas na Garantia da Lei e da Ordem. O estudo se encarrega de mostrar que o papel moderador da Forças Armadas está na combinação de quatro artigos da Constituição: 34, 136, 137 e 142. “Fica claro que a função primordial das Forças Armadas é garantir os poderes constitucionais, inclusive a independência entre eles”, disse Figueiredo, um dos autores do estudo, em conversa com a piauí. “Se houver algum risco de quebra dessa ordem, o chefe do poder que se viu atingido pode requerer uma intervenção.”
O estudo, embora realizado em 2016, só foi publicado em janeiro passado e, desde então, começou a circular no Palácio do Planalto e nos grupos de WhatsApp de reservistas que defendem uma saída autoritária. A combinação dos quatro artigos chegou a ser mencionada na reunião com Bolsonaro, para mostrar que haveria um respaldo constitucional na intervenção. Nessas franjas militares, é antiga a tese de que a Constituição submete o poder civil ao poder militar. Quando ainda era candidato, o vice-presidente, general Hamilton Mourão, ao responder uma pergunta hipotética, falou sobre o assunto. Disse entender que, em caso de “anarquia”, a Constituição prevê que o presidente dê um golpe militar em seu próprio favor. “É um autogolpe, você pode dizer isso.”
No meio jurídico, o estudo dos quatro artigos não é conhecido, mas o texto de Gandra Martins disseminou-se rapidamente e causou espanto. Em uma decisão judicial sobre uma ação movida pelo PDT, que pedia um esclarecimento sobre o papel dos militares, o ministro Luiz Fux, do STF, disse textualmente que a missão institucional das Forças Armadas “não acomoda o exercício de poder moderador”. O ministro Gilmar Mendes disse que, para confundir a missão dos militares com a de poder moderador, é preciso percorrer “uma distância abissal”. O ministro Luiz Roberto Barroso, em outra decisão, classificou a interpretação dos defensores da intervenção militar como “terraplanismo constitucional”. “Esse poder moderador que o presidente confere às Forças Armadas não existe”, disse um graduado general, que pediu para ficar anônimo porque os militares da ativa não podem emitir opiniões políticas. “Você não vai encontrar essa função em nenhum livro ou manual das escolas militares.”
Entre os militares da reserva, estão os saudosos da ditadura militar. Eles defendem a radicalização do governo, inclusive com a adoção de medidas de exceção. A situação é outra entre os atuais comandantes, que têm tropa e poder. Esses querem distância da polarização política e rejeitam qualquer hipótese de intervenção militar. Nos três últimos meses, enquanto Bolsonaro minimizava a pandemia e apoiava manifestações radicais na frente de quartéis, as três forças – Marinha, Exército e Aeronáutica – se encarregaram de adotar um comportamento oposto, participando das ações de combate à Covid-19. No mesmo dia em que Bolsonaro fez pronunciamento na tevê dizendo que a pandemia era um problema sério na Itália, mas não no Brasil, o comandante do Exército, general Edson Leal Pujol, publicou um vídeo dizendo que a crise sanitária “talvez seja a missão mais importante de nossa geração”.
Dois argumentos ajudaram a acalmar Bolsonaro na reunião. O primeiro: não havia ordem para apreender seu celular, apenas uma consulta do ministro do STF, de modo que ainda havia a possibilidade de que a apreensão não ocorresse. (De fato, dez dias depois, Celso de Mello arquivou o pedido de apreensão, mas, em sua decisão, fez questão de mandar um recado ao presidente, dizendo que o descumprimento de uma ordem judicial “configuraria gravíssimo comportamento transgressor”.) O outro argumento: o governo daria uma resposta contundente ao STF na forma de uma nota pública. Combinou-se na reunião que o general Heleno assinaria a nota. Além de concordar com a queixa de Bolsonaro segundo a qual a Corte Suprema estaria ferindo a independência entre os poderes, Heleno é responsável pela proteção física e pela defesa do presidente. Ficou acertado que a apreensão do celular do chefe do Executivo poderia ser considerada uma forma de atentado, não físico, mas contra a sua autoridade.
A Nota à Nação Brasileira, escrita pelo próprio general Heleno e divulgada no início da tarde daquela sexta-feira, veio em tom pesado. O general disse que o pedido de apreensão era “inconcebível e, até certo ponto, inacreditável” e consistia em “uma afronta à autoridade máxima” do presidente. Encerrava o texto curto com um aviso ameaçador: “O Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República alerta as autoridades constituídas que tal atitude é uma evidente tentativa de comprometer a harmonia entre os poderes e poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional.”
A nota ajudou a serenar os ânimos de Bolsonaro, mas atiçou os ânimos do país. Seu tom foi duramente criticado por políticos e juristas. Nos dias seguintes, general Heleno recebeu aplausos de organizações militares e dos seus colegas de turma da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), que lançaram uma nota alarmista, alertando para o risco de “guerra civil” e acusando os ministros do STF de falta de “decência” e de “patriotismo”. Heleno agradeceu a nota dizendo-se “emocionado”. Dias depois, com a crise do celular já superada pela decisão de Celso de Mello, o general voltou a falar da nota publicamente. Afirmou que, naquele dia, não quis ameaçar ninguém e lembrou que não citara o nome de nenhuma autoridade. No Planalto, assessores disseram que a expressão “consequências imprevisíveis” devia ser interpretada nos seguintes termos: “Tudo pode acontecer, inclusive nada.”
Na tarde daquela mesma sexta-feira, o ministro Celso de Mello autorizou a divulgação do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, na qual Bolsonaro claramente reclama que suas tentativas de interferir na Polícia Federal para proteger familiares e amigos não vinham obtendo sucesso. A repercussão do vídeo – com seu linguajar rasteiro, os palavrões, as ameaças vulgares – ajudou a elevar a temperatura. A divulgação do vídeo, no entanto, não transtornou Bolsonaro, que já esperava que o sigilo fosse levantado e apostava que, no fim das contas, seu eleitorado até ficaria satisfeito com o conteúdo.
Aintervenção foi descartada naquele dia, mas não morreu. Seis dias depois da reunião do golpe, quando Gandra Martins publicou seu artigo, o presidente divulgou uma entrevista do jurista em uma de suas redes sociais. No mesmo dia, inconformado com a operação policial contra seus aliados realizada na véspera, disse: “Acabou, porra! Me desculpem o desabafo. Acabou! Não dá para admitir mais atitudes de certas pessoas individuais.” E prometeu: “Não teremos outro dia igual a ontem. Chega. Chegamos ao limite.” Um dia antes, o deputado federal Eduardo Bolsonaro também abordara o assunto em um vídeo que se encontra no YouTube. Disse que era “inadmissível” o que os ministros Alexandre de Moraes e Celso de Mello estavam fazendo “com a democracia brasileira” e afirmou que já não havia mais dúvida de que haverá uma “ruptura”. Disse ele: “Não é mais uma opinião de ‘se’ mas ‘quando’ isso vai ocorrer.” Eduardo Bolsonaro é aquele que, antes da eleição do pai, disse que bastavam um cabo e um soldado para fechar o STF.
No dia 12 de junho, duas semanas depois do “Acabou, porra”, o próprio presidente retomou, agora em público, a ideia de que as Forças Armadas são superiores ao poder civil. Em resposta à decisão de Fux que esclareceu que os militares não formam um “poder moderador”, Bolsonaro divulgou uma nota dizendo que as Forças Armadas não cumprem “ordens absurdas” e não aceitam “tentativas de tomada de poder por outro poder da República, ao arrepio das leis, ou por conta de julgamentos políticos”. O vice-presidente e o ministro da Defesa assinaram a nota com o presidente. Naquele mesmo dia, veio a público o conteúdo de uma entrevista à revista Veja na qual o general Ramos, da Secretaria de Governo, disse que era “ultrajante” a ideia de que militares estão pensando em golpe e, em seguida, completou com o mais explícito golpismo já externado por um militar no governo: “O próprio presidente nunca pregou o golpe. Agora, o outro lado tem de entender também o seguinte: não estica a corda.”
Em 16 de junho, dia em que o Supremo quebrou o sigilo bancário de onze parlamentares bolsonaristas e a Polícia Federal fez uma operação de busca e apreensão contra suspeitos de financiarem ilegalmente atos antidemocráticos, Bolsonaro publicou uma série de dez mensagens numa rede social. Disse que não podia “assistir calado enquanto direitos são violados e ideias são perseguidas”, e argumentou que sua luta destinava-se a defender “a Constituição e a liberdade dos brasileiros”.
Com notas ambíguas ou claras, declarações dúbias ou ameaçadoras, o fantasma de uma intervenção militar não se dissipa. Em maio, o próprio general Heleno teve que mandar um áudio no WhatsApp para desmentir uma versão atribuída a um capitão da reserva, Durval Ferreira, segundo a qual o general vinha defendendo um golpe militar. “Boa noite a todos os amigos do Rio Grande Sul. Quem está falando é o general Heleno, daqui de Brasília”, começa o áudio. Na mensagem, que dura 1 minuto e 50 segundos, o general admite que conhece Durval Ferreira – “conheço, mas não é meu amigo” –, mas diz que o capitão não tem autorização para falar em seu nome. “Não penso como ele”, diz o general. “Não acho que haja clima para uma intervenção militar, muito menos para um golpe de Estado.” Heleno afirma que “medidas graves foram tomadas em discordância da Constituição”, mas que, nessa hora crítica, “temos que ter muito juízo”, e encerra pedindo “muita, mas muita prudência”. Durval Ferreira afirma que nunca disse que Heleno pregava um golpe militar.
A decisão do presidente de intervir no STF pode ser vista como intempestiva, tomada no calor da hora, mas é relevante que os anais da história registrem que o presidente do Brasil, numa reunião no palácio na manhã de 22 de maio de 2020, decidiu ocupar o Supremo com tropas – e foi persuadido a desistir da quartelada. Curiosamente, naquele mesmo vídeo no YouTube em que diz que a “ruptura” é só uma questão de tempo, Eduardo Bolsonaro afirma para sua audiência que o Brasil está no caminho de uma ditadura, orquestrada pelo STF, e explica que um regime autoritário não se materializa de um dia para o outro. Constrói-se aos poucos. Para elucidar seu ponto, Eduardo cita então o exemplo da Venezuela e dá a receita: “[Você] dissolve a Suprema Corte, bota todos bolivarianos indicados pelo Hugo Chávez.”
Ditadura, está claro, é só quando o outro dissolve a Suprema Corte.
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