Informar de modo a permitir que compreendam por si os princípios metafísicos que estão por trás de todos os eventos bons e ruins que se manifestam em nossa realidade; princípios ocultos que estão enterrados debaixo de muito entulho político-religioso; econômico-social; histórico-cultural.
sexta-feira, 10 de julho de 2020
Entendendo as milícias digitais do bolsonarismo
Pra entender as milícias digitais do bolsonarismo
Antropóloga analisa: extrema-direita manipulou características do WhatsApp — fechado, difícil de rastrear e mais acessado que outras redes — para transformar população insatisfeita em reprodutores da palavra do “capitão”
OUTRASPALAVRAS
TECNOLOGIA EM DISPUTA
por Maria Clara F. Guimarães e Matheus A. Vaz
Publicado 30/09/2019 às 18:10 - Atualizado 09/07/2020 às 08:27
Letícia Cesarino, entrevistada por Maria Clara Ferreira Guimarães e Matheus Antonino Vaz, do ComCiência| Imagem: João Montanaro
Letícia Cesarino é professora no Departamento de Antropologia e no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É graduada em ciências sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) (2004), mestra em antropologia pela Universidade de Brasília (UnB) (2006), e doutora em antropologia pela Universidade da Califórnia em Berkeley (2013). Tem trabalhado e publicado nos campos da antropologia da ciência e tecnologia, antropologia digital, antropologia econômica e do desenvolvimento, globalização e estudos pós-coloniais.
Você tem realizado pesquisa de campo nos grupos de WhatsApp. Como funciona essa pesquisa? Por que resolveu se dedicar a este campo?
Trabalho há muitos anos no campo da antropologia da ciência e cibernética, e mais recentemente tenho focado no estudo da internet e mídias digitais. A surpreendente eleição brasileira de 2018 despertou interesse de pesquisadores no mundo inteiro, mas minha aproximação se deu por motivos pessoais, quando uma pessoa muito próxima, que eu acreditava ter um perfil destoante do de Jair Bolsonaro, declarou seu voto a ele. Como estava claro que a imagem do então candidato havia sido construída digitalmente, principalmente através da quantidade maciça de conteúdo pelo WhatsApp, comecei aí minha pesquisa, exatamente um ano atrás. O foco desde então tem sido grandes grupos públicos pró-Bolsonaro no WhatsApp, complementado por outras plataformas que se ligam a ele num ecossistema comum, especialmente Twitter, YouTube e Facebook. Eu por enquanto venho apenas coletando conteúdo e observando interações nessas mídias, mas numa segunda etapa o plano é passar para etnografia offline com alguns desses usuários.
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O que é o populismo digital? Quais as diferenças principais em relação ao populismo tradicional?
As continuidades entre os dois são muitas, mas há diferenças importantes. A teoria do populismo do argentino Ernesto Laclau, na qual eu me baseio, foi desenvolvida para entender populismos pré-digitais clássicos, como o de Juan Perón ou Getúlio Vargas. Hoje, ainda considero válido o núcleo da teoria, segundo a qual populismo é a construção da identidade de “povo” num contexto de crise, por uma liderança carismática que se diz antissistema, através de dois eixos discursivos articulados: uma fronteira antagonística opondo amigo a inimigo, e uma cadeia de equivalência unindo líder e povo. Em todos os casos, o populismo opera com um tipo de linguagem essencialmente performativa, na qual o emissário (líder) e receptores (povo) da mensagem não preexistem enquanto tais ao ato comunicativo que os une, mas são constituídos por ele. Vimos claramente como isso ocorreu no caso brasileiro, onde, num contexto de crise aguda, a multidão difusa que foi às ruas em junho de 2013 foi sendo gradualmente construída enquanto “povo”, primeiro através do eixo antagonístico do antipetismo e do movimento anticorrupção, e depois através da cadeia de equivalência mobilizada por Jair Bolsonaro em 2018, que operou com o tipo de simbologia mais elementar e previsível possível: em torno da ideia da nação. A base para a irrupção populista já estava posta: tudo o que Jair Bolsonaro precisou fazer foi aproveitá-la para proveito próprio, valendo-se do seu carisma como alguém espontâneo e antipoliticamente correto (o “mito”) através de uma estratégia de campanha digital bastante sofisticada e bem planejada.
A diferença do populismo digital está, creio, no seu tipo especial de eficácia: as mediações digitais permitem fractalizar o mecanismo descrito por Laclau para a rede de seguidores do líder, que passam a reproduzi-lo de modo espontâneo. Na era pré-digital, a eficácia da liderança populista dependia muito das suas capacidades pessoais – oratória, por exemplo. Hoje, boa parte desse carisma e capacidade mobilizadora passa não pela pessoa do líder, mas por atributos das próprias mídias digitais, dos memes aos algoritmos. Todo populista bem-sucedido hoje precisa ser também um bom influenciador digital. Mas no caso brasileiro, diferente de outros, interveio uma contingência que se mostrou crucial: o atentado à faca sofrido pelo candidato. A partir desse momento, formou-se o que eu chamei do “corpo digital do rei”, onde o corpo de apoiadores de Bolsonaro (os autointitulados “marqueteiros do Jair”) substituiu seu corpo físico debilitado na campanha eleitoral, o que foi determinante para sua vitória. Nesse ponto, a campanha Bolsonaro surfou num elemento de eficácia que é próprio do modelo de negócios das redes sociais atualmente, que se baseiam no user-generated content, ou conteúdos gerados pelos usuários.
De que forma o WhatsApp e suas particularidades funcionais contribuem para a disseminação do discurso populista, se comparado a outras redes sociais?
O principal diferencial do WhatsApp, como outros pesquisadores também têm apontado, é a sua extraordinária capilaridade. Isso ocorre por vários fatores. O mais evidente é o padrão de uso do aplicativo, pois, por ser uma ferramenta que em larga medida substituiu a função de comunicação pessoal do telefone, é checado com assiduidade maior que outros. Isso é um fator central para o sucesso do mecanismo populista, pois, para que ele continue gerando o efeito de unificação do “povo”, é preciso que a mobilização seja constante. Um dos tipos de conteúdo digital mais comuns, tanto antes quanto depois da eleição, são justamente mensagens alarmistas e conspiratórias – às vezes falsas, às vezes apenas exageradas – que visam essa função mobilizadora, normalmente indicada em avisos como “urgente!” ou “cuidado!”. Muitos algoritmos, como o do YouTube, premiam esse tipo de conteúdo.
Além disso, o WhatsApp possibilitou que conteúdo de campanha (tanto a oficial como a não-oficial, supostamente feita pelos próprios apoiadores do então candidato) que circulava em outras plataformas como Twitter ou Facebook chegasse a usuários que não estavam registrados ou ativos nelas. E melhor ainda: chegavam já filtrados. É possível que o WhatsApp tenda a ser visto como uma plataforma mais confiável, pois não é aberta à interação pública como outras, e normalmente opera fundamentalmente através de redes pessoais. E há ainda, no caso do Brasil, um fator infraestrutural que é determinante: os pacotes de dados com WhatsApp grátis, oferecido por todas as operadoras. Muitos pesquisadores vêm apontando como, para boa parte da população, o acesso à internet se limita ao WhatsApp, o que basicamente impossibilita a checagem de fatos e o acesso ao contraditório. As pessoas passam a ver o mundo através de uma bolha digital fechada, que se torna a única representação “verdadeira” (pois a única disponível) do mundo político. Isso foi, inclusive, bastante estimulado pelo atual presidente durante a campanha, ao deslegitimar desde o início a imprensa e a esfera pública de modo mais amplo, e pedir aos seus eleitores que acessassem informação exclusivamente através das suas lives e redes sociais. Como se diz por aí: o Twitter virou o novo diário oficial.
Esse elemento de construir um canal de acesso exclusivo do líder ao “povo” é uma característica também dos populismos pré-digitais. O melhor exemplo que temos no nosso caso talvez seja a Voz do Brasil, criada justamente por Getúlio Vargas. O problema de hoje é que esse canal exclusivo, quando construído por meio das mídias digitais, é visto como espontâneo, horizontal e movido pela liberdade de expressão. Mas essa dicotomia é enganadora: aqui, liberdade e controle, espontaneidade e manipulação andam juntos. Por isso, inclusive, a perspectiva cibernética é interessante, uma vez que opera com noções de “comando e controle” que são transversais a essas dicotomias. Como venho insistindo, as mídias digitais são um tipo paradoxal de mediação, pois geram no usuário uma falsa experiência de ausência de mediação. Os apoiadores de Jair Bolsonaro acham que podem prescindir do sistema político-representativo pois acreditam poder acessá-lo diretamente através do seu smartphone. Essa expectativa é, aliás, regularmente alimentada pelo presidente nas suas redes sociais, ao dizer que tal ou qual medida foi tomada depois de ouvir tal ou qual eleitor no seu Facebook ou Twitter.
Você afirma que o WhatsApp apresenta certas características que o diferenciam das outras redes sociais nos últimos anos. O que e como exatamente essas possibilidades dos usuários nessa rede permitem a interação política?
Há um pressuposto que precisa ser problematizado: o WhatsApp é uma rede social? O aplicativo não parece ter sido originalmente criado por seus desenvolvedores com esse propósito, mas para ser um meio de comunicação privado. Por isso ele é peer-to-peer, encriptado etc. Porém, devido a ferramentas como a de encaminhamento, os grandes grupos e os links para grupos públicos, o aplicativo tem sido utilizado, na prática, como uma rede social. As interações que ocorrem ali, são de difícil, senão impossível, rastreio, e têm incidido em questões públicas cruciais como o processo eleitoral – mas não apenas. As ferramentas de monitoramento de WhatsApp disponíveis (na UFMG e UFBA, por exemplo), indicam a incidência do aplicativo em outros setores como o de saúde pública.
Isso coloca dilemas regulatórios bastante particulares, e ainda mais complicados do que no caso do Facebook e outras redes, que já eram eles mesmos difíceis de lidar. Pois o WhatsApp é, hoje, uma espécie de terra de ninguém: a quantidade de conteúdos explícitos de violência (espancamentos, estupros, assassinatos, torturas), pornografia e fraudes como oferta de cartões de crédito ou documentos falsos que circula é impressionante. Apesar de os grupos que eu acompanho serem exclusivos para política e proibirem expressamente esse tipo de conteúdo, é comum que eles “vazem” para os grupos, especialmente naqueles em que os moderadores não são muito ativos. Já vi até grupos acabarem depois de terem sido “inundados” por esse tipo de conteúdo. Por isso, o WhatsApp tem sido às vezes chamado da nova deep web.
Ao passo em que muitas pessoas se dizem insatisfeitas com a política tradicional, grande parte continua integrando grupos de WhatsApp com discussões sobre o assunto. Existe, nesses grupos, de alguma forma, esfera de controle social sobre o debate público?
Acho que há uma questão crucial que poucos estão notando. É bastante comum ouvir nas redes bolsonaristas como o atual presidente fez com que as pessoas se interessassem por política como nunca antes no Brasil – o que é alardeado como um dos feitos milagrosos do “mito”. Mas, para mim, a questão que se coloca é outra: como o bolsonarismo e as mídias digitais têm transformado o que se entende por política no Brasil. Havia um elemento de entretenimento bastante evidente na campanha eleitoral de Jair Bolsonaro, que foi avançada por meios quase que exclusivamente digitais e se pretendia antissistema. No lugar dos antigos debates enfadonhos na TV, longos planos de governo em linguagem burocrática, especialistas que ninguém entende, foi oferecido aos eleitores o carisma dos memes, da lacração, dos roteiros quase hollywoodianos das narrativas conspiracionistas, a excitação de um campeonato de futebol que precisa ser vencido a qualquer custo, a diversão das dancinhas coreografadas e hits do MC Reaça, a catarse coletiva de projetar todas as frustrações individuais em um inimigo público comum (no caso, o PT). E não apenas entretenimento: a campanha grassroots de Bolsonaro foi inclusive uma oportunidade de geração de renda no contexto de precariedade trabalhista no qual se encontra boa parte da população brasileira – desde as ubíquas camisetas do mito vendidas nas ruas, até canais do YouTube que conseguiam seguidores o suficiente para se monetizar, passando por meios mais obscuros como os sites de fake news que geram renda através de ferramentas de propaganda personalizada como o Google AdSense (muitos dos quais, inclusive, eram difundidos através do WhatsApp). Não é difícil qualquer um, mesmo crianças e adolescentes, se interessarem por política hoje em dia, porque a política na nossa época neoliberal já virou outra coisa.
Nos termos de Laclau, podemos dizer que, no contexto populista atual, a política passa principalmente não pela racionalidade, impessoalidade e debate público, mas pelo plano dos “afetos”, e por um nível muito elementar de formação de grupo que prescinde de qualquer educação política no sentido específico do termo. Em minhas análises, utilizo vários conceitos desenvolvidos por antropólogos a partir de pesquisas com sociedades tribais, na África ou na Melanésia. Eles fazem muito sentido para pensar elementos centrais da política hoje. Em minhas análises tenho sugerido, inclusive, que a prevalência das mediações digitais no mundo de hoje tem desestruturado pilares centrais do que chamamos de modernidade, como a ciência e a democracia representativa. Neste sentido, não seria à toa que nosso comportamento político tem se afastado do que seria a norma para a teoria política liberal, e se aproximado de formas políticas de sociedades não modernas ou do passado do ocidente, como as políticas das multidões na Europa do século XIX.
O que se tem observado no Brasil e em outros lugares do mundo hoje é que as pessoas têm feito suas escolhas eleitorais com base nos mesmos critérios que utilizam para outros tipos de interação social. Isso é democracia? Mais ou menos. Pois o que temos visto nas redes bolsonaristas, de modo bastante claro, é uma redução do significado de democracia a apenas um de seus componentes, o da soberania popular. A viúva de Laclau, a belga Chantal Mouffe, aponta que a democracia moderna possui, ainda, um outro polo além desse, que é o liberal-institucional, representado em estruturas de pesos e contrapesos como o equilíbrio dos três poderes. É esse polo que tende a ser esvaziado em contextos de irrupção populista, e é exatamente o que vemos hoje, em pautas bolsonaristas como os ataques ao STF, ao legislativo, e a evocação das Forças Armadas.
O que as pessoas no Brasil parecem não estar se lembrando é que igualar democracia apenas à vontade da maioria, à suposta vontade do “povo” incorporada na figura do líder acima de tudo e de todos, não é democracia. A história europeia do século XX deu a isso um outro nome.
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TAGS
ANTROPOLOGIA, DIREITA NA POLÍTICA, GETÚLIO VARGAS, JAIR BOLSONARO, MARQUETEIROS DO CAPITÃO, MILÍCIAS BOLSONARISTA, POPULISMO DIGITAL, REDES SOCIAIS, WHATSAPP
MARIA CLARA F. GUIMARÃES E MATHEUS A. VAZ
Maria Clara Ferreira Guimarães é graduada em linguística pela Unicamp. Atualmente é aluna da especialização em jornalismo científico no Labjor/ Unicamp.
Matheus Antonino Vaz é formado em jornalismo pelo Mackenzie. Atualmente é aluno do curso de especialização em jornalismo científico no LabJor/Unicamp.
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5 comentários para "Pra entender as milícias digitais do bolsonarismo"
Ricardo Cavalcanti-Schiel
disse:
1 de outubro de 2019 às 01:04
Toda essa análise falha num ponto essencial: Por que um contingente militante se mobilizou por Bolsonaro? Só por alguém ter-se mobilizado, o resultado se chama “populismo”? Ora, por que os bolsonaristas conquistaram espaço de legitimidade? Essa não é só uma questão de “como”. Já advertia o velho Bourdieu: não existe mágica ilocucionária.
Na década de 80 era a militância do PT (na época em que o PT ainda era um partido de massas) que se mobilizava. A pergunta pelo avesso da primeira acima é: Por que a esquerda não se mobilizou como aprendeu há 30 anos a se mobilizar? Ou ela já não existe mais? E não existe por que?
Quando os analistas resolverem se indagar sobre isso, quem sabe não começam a entender por que alguém com um discurso universalista meramente primário em torno da “nação” consegue criar um espírito de communitas que dá uma surra exemplar numa esquerda que virou pura fragmentação, remendo, falta de projeto, hipocrisia e, principalmente, arrogância e pretensão de onipotência (simbólica sobretudo).
Claro que há um grau não desprezível de simplificação truculenta (uma truculência sedutora, sobretudo para os depauperados de poder, direito e cidadania) no discurso whattsapiano do bolsonarismo. E é aí que está a coisa. Mas essa “coisa” só funciona porque um certo ambiente político chegou a um grau de exasperação que, isso sim, deveria ser objeto de perscrutamento.
Por que as pessoas foram buscar sua cidadania numa vontade-de-potência bolsonarista? A resposta até meio que óbvia é que essa cidadania não existe mais em nenhum espaço da política, ela foi sequestrada pelo liberalismo predatório lulista. Isso é crise (ou colapso, como prefere o Luiz Eduardo Soares) da representação. Não é emergência do populismo. Tem algo que vem antes.
Reiterar esse discurso fácil e de moda sobre o “populismo” é apenas mais uma manifestação da mesma arrogância liberal de não querer sair do quadrado das suas verdades domésticas. Os antropólogos que apostamos mais alto sabemos, como Geertz, que se quiséssemos viver com elas, não deveríamos ter saído de casa.
É. É isso mesmo: apostar todas as fichas interpretativas no “populismo” pode ser apenas uma manifestação de etnocentrismo liberal. O mundo não é necessariamente o espelho da Califórnia.
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Stefania
disse:
1 de outubro de 2019 às 12:42
Essa semana, em conversa com amigos, um deles me disse que a sociedade, em sua acepção mais ampla, havia mudado e que, nesse sentido, eu haveria de ter que me adaptar “ao que esta aí”. A princípio, concordei com ele e, embora um pouco relutante, fiquei a pensar sobre o sentido dessa mudança. Então, o que me ocorreu, e talvez aqueles que tenham mais de trinta possam entender o meu ponto de vista, é que a atualidade não nos trouxe mais compreensão, discernimento e participação social, principalmente no que concerne à política. Fato esse que continuamos polarizados entre esquerda e direita, mesmo que disfarçados sob o manto do neoliberalismo dito inovador. Os acordos, nos três poderes, continuam sendo feitos como dantes, a compra de votos nessas casas é alardeada e, diria eu, até mais banalizada pela imprensa do que nos tempos da Casa da Dinda. Nesse sentido, o populismo também alcançou patamares diferentes do que, até então, era de praxe. Deixou de ter característica mais apelativa, ou de campanha de palanque, e incorporou o modelo de gestão populacional, uma espécie de “coaching” aos desavisados, aos, até então, avessos à política, aqueles que nunca se interessaram por ela. Resume-se, ao meu ver, a um ramo, no mundo dos negócios seria um “branch”, uma terminação nervosa, e bem nervosa, diga-se de passagem, para satisfazer aos anseios de um povo que não acompanha a política de seu país, que não tem memória de seu passado, mas que está insatisfeita com seu presente, embora não saiba bem como chegamos até aqui.
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Thyago
disse:
1 de outubro de 2019 às 16:43
Ok.
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Rafael Jorge
disse:
5 de novembro de 2019 às 19:20
Senti falta da menção ou consideração do fato de que o whatsapp é apenas o meio de propagação do populismo que tem uma nova roupagem no meio digital. Como disse Macluhan “o meio é a mensagem”. Mas o grande ponto é que esse meio foi usado e não só como propagação do populismo, ele foi usado ilegalmente em vários aspectos, primeiro por promover fake news contra os adversários e principalmente, um investimento exorbitante, fora do estabelecido pelas regras eleitorais, que garantiu uma manada de robôs propagando mentiras e não só as mensagens do capitão. Em que pese que a pesquisadora trata do populismo na era digital, mas ao meu ver a estratégia de bolsonaro está para além disso. Não sei se a pesquisa considera o grande “cérebro” disso tudo que é a Cambridge Analitycs. que tem uma estratégia de “emburrecer” a população e desmoronar a democracia e o pacto social local para implantar uma nova ordem em terra arrasada. Um ponto bem colocado é que o whatsapp não é bem uma rede social, ele é um meio que propicia a troca de mensagens, e dentro da estratégia da Cambridge, ela manipula e conquista a tal milicia digital a partir da polarização politica que binariza as discussões para evocar o fascismo, ou seja, destruir o racionalismo, polarizar o debate e implantar uma semente fascista, como fizeram onde participaram, aí menciono Brexit e Trump.
Coloco esses elementos para dialogar com a pesquisadora caso ela tenha acesso a esse comentário…
Até mais
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Celia
disse:
1 de junho de 2020 às 13:43
O ano de 2020 chegou com articulações politicas para combater, aqui no Brasil, no momento mais propício, aos olhos das autoridades, um Vírus pela ótica pandêmica, porque até antes do carnaval brasileiro, um evento que arrecada milhões com o turismo e afins, não se falava em Pandemia, justamente por que? Por interesses políticos e econômicos, é obvio. E hoje em pesquisa sobre milícias digitais me deparo com uma pesquisa, que parece ainda estar em andamento, pelas falas dos autores, com foco na campanha para presidente 2018 e as redes sociais tendo o whats app como norteador. Uma pesquisa que usa a antropologia e os rebuscados científicos, pensadores de esquerda, influenciadores de autores como os deste estudo, e ainda assim vejo os autores criticando o populismo de um povo influenciado por um candidato, intitulando um povo sedento de mudanças de “bolsonaristas” esquecendo o passado que ainda ecoa de uma sistema corrupto e doutrinador de ideologias desconstrutoras, principalmente da família, sentando em cima do próprio rabo, esquecendo que os petistas também tiveram sua parcela de responsabilidade na destruição do Brasil. Deixem o Brasil ser governado por uma nova proposta, e se não der certo, como não deu certo como o PT, entao sim, venham às mídias e realizem seus estudos cientificos e provem que este presidente eleito pela VONTADE do povo não deu certo, mas até lá, deixem o homem governar.
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Theodor Adorno
A formação da personalidade autoritária
O contexto social e político é decisivo. Mas que características psíquicas levam os indivíduos a ansiar por relações de poder baseadas na força bruta e na opressão? Publicado há 70 anos, estudo clássico de Theodor Adorno tem enorme atualidade
OUTRASPALAVRAS
DIREITA ASSANHADA
por Rodrigo Duarte
Publicado 09/07/2020 às 19:38 - Atualizado 09/07/2020 às 20:00
Por Rodrigo Duarte | Imagem: Cleon Peterson,Blood and Soil
MAIS:
Este texto integra o dossiê
A Personalidade Autoritária hoje, da
Revista Cult, parceira editorial de Outras Palavras
A edição 259 (Julho de 2020), que contém os textos, está aqui
O crescimento e a difusão de posições políticas neofascistas e até mesmo a eleição de políticos de extrema-direita – como nos Estados Unidos, Reino Unido, Hungria, Brasil – conclamam as consciências democráticas do mundo todo a não apenas se contrapor politicamente ao fenômeno, mas também compreendê-lo e sobre ele refletir em profundidade. Esse tipo de reflexão sempre teve na Teoria Crítica da Sociedade um esteio importante, a partir da publicação, em 1944, de uma primeira versão da Dialética do esclarecimento, de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, para a compreensão em profundidade – e em detalhes – do autoritarismo. Naquele mesmo ano de 1944, uma obra não menos relevante começou a ser gestada, quando Adorno, ainda na condição de exilado nos Estados Unidos, foi chamado a coordenar um grupo de pesquisadores da Universidade de Berkeley com o propósito de realizar uma investigação inédita. O objetivo era identificar, em indivíduos considerados “normais”, elementos psíquicos que predisporiam sua adesão a posições políticas fascistas, não obstante o caráter “liberal” da democracia estadunidense. Essa pesquisa deu origem ao livro A personalidade autoritária, de autoria coletiva, publicado em 1950 e que tem sido considerado, desde então, um clássico da psicologia social. Uma obra que, de modo peculiar no momento presente, é revestida de enorme atualidade.
Embora os resultados da pesquisa tenham apontado para uma situação mais ampla que o preconceito em relação a judeus, o fato gerador da investigação foi um financiamento fornecido pelo Jewish Labor Committee estadunidense, que incluiu vários projetos sobre o assunto e influenciou também na inclusão do capítulo “Elementos do antissemitismo” na Dialética do esclarecimento. Além disso, havia também o “Projeto sobre o antissemitismo”, iniciado por Adorno e Horkheimer em 1941. Tratava-se de um trabalho essencialmente teórico, embora retomasse a pesquisa empírica iniciada ainda na Alemanha e intitulada Estudos sobre autoridade e família. Ambas as investigações – considerando-se também o referido capítulo da Dialética do esclarecimento – serviram de ponto de partida para a contribuição de Adorno em A personalidade autoritária, como fica patente na declaração dos próprios autores da pesquisa de que o “antissemitismo foi o ponto de partida para a investigação sobre o caráter autoritário”.
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Em A personalidade autoritária, destaca-se um ponto de vista ético-político — não escamoteado em prol de uma suposta “neutralidade” científica — no qual os autores contemplam a possibilidade de explicitar os pressupostos psicológicos para o desenvolvimento de uma racionalidade mais substantiva, superior à instrumental que ainda hoje predomina de forma quase absoluta. Vale observar que um importante pressuposto teórico da pesquisa é de que o fascismo, embora seja um fenômeno de massas, tem sua gênese numa predisposição psicológica dos indivíduos, na medida em que “um caráter maduro aproximar-se-ia mais de um sistema de pensamento racional do que um imaturo. […] Nisso baseia-se a convicção de que à busca pelos determinantes psicológicos da ideologia subjaz a esperança de que as pessoas possam se tornar mais racionais”. Levando em consideração a irracionalidade congenial às ideologias totalitárias, a esperança dos autores poderia ser igualmente determinante na consolidação de uma democracia mais plena.
Entre os pressupostos da pesquisa empírica – que incluía preenchimento de questionários, fornecimento de dados, respostas discursivas a questões projetivas, entrevista ideológica, entrevista clínica e Teste de Apercepção Temática – estava a ideia de que as pessoas que demonstram susceptibilidade extrema para a propaganda fascista têm muito em comum, enquanto as que a rejeitam enfaticamente diferem muito entre si. Além disso, os autores do estudo externam a convicção de que “o antissemitismo, mais do que em propriedades reais dos judeus, repousa em fatores subjetivos da situação geral do antissemita”.
Vale ressaltar que o papel determinante ou não da propaganda antidemocrática no posicionamento político das pessoas depende fortemente da atuação de poderosas comunidades de interesse econômico. Não por acaso, a escala F (de fascismo) de medição de tendências autoritárias, obtida com base em um dos quatro tipos de questionário aplicados, foi estabelecida por Adorno diretamente vinculada à influência da indústria cultural sobre os indivíduos. A consideração desse fato pode explicar, aliás, por que “nesses casos o indivíduo parece não apenas ignorar seus interesses, mas até mesmo agir contra eles; parece identificar-se com um grupo maior, como se indagações menos racionais dos próprios interesses determinassem seu ponto de vista”.
O impacto determinante da indústria cultural no psiquismo dos indivíduos tem a ver com o fato de que o fascismo – diferentemente de outros regimes ditatoriais –, necessita de uma base de massa para ter sucesso como movimento político, o que significa que ele deve assegurar uma cooperação ativa, e não apenas uma submissão medrosa de amplos setores da população envolvida. Esse impacto ocorre porque a ideologia fascista veiculada pelos meios de massa corresponde à estrutura de caráter dos indivíduos integrantes dos mencionados setores, uma vez que “antigas expectativas, nostalgias, medos e inquietações tornam as pessoas receptivas a certas convicções e resistentes a outras”.
As características psicológicas que, de acordo com os autores, permitem aferir o grau de antissemitismo latente nos sujeitos da pesquisa foram: a) “convencionalismo”, ou seja, a fixação em valores aceitos de forma convencional e acrítica; b) “submissibilidade autoritária”, a qual designa a submissão completa e acrítica a um líder; c) “agressão autoritária”, que é a tendência do autoritário a punir pessoas consideradas outsiders; d) “anti-intracepção”, que significa uma reação extremada contra tudo o que é subjetivo ou imaginativo; e) “superstição e estereotipia”, que indica a crença na determinação mística do próprio destino; f) “pensamento de poder”, que designa a identificação completa com formas de poder; g) “destrutividade e cinismo”, que corresponde à hostilidade generalizada e gratuita; h) “projetividade”, a qual aponta para a projeção de pulsões sobre o exterior; i) “sexualidade”, que consiste na exacerbação no trato com processos sexuais.
Todas essas características, normalmente combinadas entre si em proporções diversas, constituem a alta pontuação de um indivíduo na escala F e, via de regra, estão relacionadas à integração defeituosa das leis morais em sua estrutura de caráter. Numa linguagem psicanalítica, dir-se-ia que a consciência ou supereu são imperfeitamente integrados no eu, entendido aqui como a unidade das funções de autocontrole e da autoexpressão do indivíduo. Pode-se supor, segundo os autores da pesquisa, que a internalização fracassada do supereu relaciona-se com uma fraqueza do eu, com sua incapacidade de executar a integração necessária do supereu com o eu.
Praticamente todas as características mencionadas relacionam-se igualmente com a “fraqueza do eu”: com a anti-intracepção, porque o anti-intraceptivo extremo não ousa refletir sobre fenômenos humanos, na medida em que se encontra inseguro sobre sua própria identidade. A superstição e a estereotipia também se ligam a “hábitos de pensamento proximamente aparentados com o preconceito, na medida em que não podem impedir também a atividade espiritual no âmbito extraceptivo”.
Também à característica “pensamento de poder”, a qual se manifesta como demonstrações aparentemente gratuitas de força, “subjaz a hipótese de que a exibição exagerada de robusteza não apenas pode refletir a fraqueza do eu, mas também o peso da exigência posta a ele, isto é, dominar a intensidade de certas necessidades pulsionais, que são reprovadas pela sociedade.
No caso da variante “destrutividade e cinismo”, a fraqueza do eu se expressa na aceitação da agressividade extrema sem nenhuma forma de censura moral, o que remete, mais uma vez, à integração defeituosa do super-eu no eu. A variante “sexualidade” subjaz a quase todos os comportamentos associados à alta pontuação na escala F, uma vez que os distúrbios na economia psíquica dos indivíduos associam-se, como sugerido, a descaminhos das pulsões.
Tais descaminhos associam-se, por sua vez, à característica da “projetividade”, cujo mecanismo exprime-se em conexão com a agressão autoritária. O autoritário tende a projetar seus impulsos reprimidos em outras pessoas, a fim de prontamente acusá-los: “Projeção é, portanto, um meio de manter pulsões do isso alheias ao eu e pode ser considerada um sinal de incapacidade do eu em preencher suas funções”.
Para concluir, pode-se dizer que a atualidade das contribuições de A personalidade autoritária fica patente até mesmo se cotejamos a caracterização feita do “pontuador alto” na escala F com a dos neofascistas brasileiros, inclusive com seu “chefe supremo”: são convencionais, submissos ao líder, agressivos, “extrospectivos”, supersticiosos, identificados com o poder autoritário, destrutivos e “projetivos” – podendo-se reconhecer em todas essas características um subjacente descaminho das pulsões sexuais.
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ADORNO, ATAQUES À DEMOCRACIA, AUTORITARISMO, BASES PSÍQUICAS DO AUTORITARISMO, CAPA, FASCISMO, GOVERNO BOLSONARO, PERSONALIDADE AUTORITÁRIA, PSICOLOGIA DO FASCISMO, THEODOR ADORNO, ULTRADIREITA, ULTRADIREITA NO MUNDO
RODRIGO DUARTE
Doutor em Filosofia pela Universidade de Kassel (Alemanha) e professor titular do Departamento de Filosofia da UFMG. Autor de "Adorno/Horkheimer e a dialética do esclarecimento" (Zahar) e "Adornos: nove ensaios sobre o filósofo frankfurtiano" (UFMG)
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A necropolítica brasileira
quarta-feira, 8 de julho de 2020
A necropolítica de bolsonaro
sábado, 4 de julho de 2020
É ASSASSINATO
ASSASSINATO
VOLUNTÁRIO
Você
é assassino!!
E
Você, assassina!!
Você
que não acatou, desobedeceu ao protocolo sanitário, ao isolamento social em
consequência do covid-19, não importa as desculpas que dê, você é assassino, é
assassina!!
Você
ignorou… Saiu… Fez o que quis… Fez o que bolsonaro quis que você fizesse… Volta
para casa e contamina quem nela estar com você [a mãe, o pai, filhas, filhos,
esposa, esposo, avó, avô...]. Vai para o hospital e lá, contamina enfermeiras,
enfermeiros, médicas, médicos; maqueiros/as, motorista da ambulância e quem
mais do suporte hospitalar… E vai matando quem você contaminou em casa, no
hospital, na rua…
Isso
é assassinato voluntário!!
Você
é o assassino!!
E
Você, a assassina!!
Negreiros
Deuzimar Menezes, 65, Professor (de Professo...)¹, Radiojornalismo – DRT nº
0772-MA, num canto, de um lugar qualquer, em 15 de Junho de 2020.
Professor (de
Professo...)¹, porque Professor, de Professo, significa Historiador e Profeta
porque uma profecia que se realiza transforma-se em História!!
quinta-feira, 2 de julho de 2020
A necropolítica de Bolsonaro
Mentalidade doente
O presidente da República disse outro dia que brasileiros mergulham no esgoto e não acontece nada. O que vemos nesse homem é o exercicio da necropolítica, uma decisão de morte. É uma mentalidade doente que está dominando o mundo.
Covid-19 versus humanidade
Especial - Dia Mundial do Meio Ambiente
Edição 125 - Publicado em: 11/06/2020
Edição 125 - Publicado em: 11/06/2020
Em homenagem ao “Dia Mundial do Meio Ambiente” e à memória de Randau Marques, criador do jornalismo ambiental no Brasil, a Ecológico reproduz uma síntese do pensamento do também jornalista ambiental e líder indígena mineiro Ailton Krenak, extraída de seus mais recentes livros: "O amanhã não está à venda" e "Ideias para adiar o fim do mundo"
“Parei de andar mundo afora, cancelei compromissos. Estou com a minha família na aldeia Krenak, no médio Rio Doce, entre Minas e o Espírito Santo. Nossa reserva indígena está isolada. Quem estava ausente regressou, e sabemos bem qual é o risco de receber pessoas de fora. Sabemos o perigo de ter contato com pessoas assintomáticas. Estamos todos aqui e até agora não tivemos nenhuma ocorrência.
A verdade é que vivemos encurralados e refugiados no nosso próprio território há muito tempo, numa reserva de 4 mil hectares – que deveria ser muito maior se a justiça fosse feita – e esse confinamento involuntário nos deu resiliência, nos fez mais resistentes.
Como posso explicar a uma pessoa que está fechada há um mês num apartamento numa grande metrópole o que é o meu isolamento? Desculpem dizer isso, mas hoje já plantei milho, já plantei uma árvore...
Faz algum tempo que nós, na aldeia Krenak, já estávamos de luto pelo nosso Rio Doce. Não imaginava que o mundo nos traria esse outro luto. Está todo mundo parado. Quando engenheiros me disseram que iriam usar tecnologia para recuperar o Rio Doce, perguntaram a minha opinião. Eu respondi: ‘A minha sugestão é muito dificil de colocar em prática. Pois teremos de parar todas as atividades humanas que incidem sobre o corpo do rio, a 100 quilômetros nas margens direita e esquerda, até que ele voltasse a ter vida’.
Então, um deles me disse: ‘Mas isso é impossível’. O mundo não pode parar. E o mundo parou.
Tragédia mundial
Vivemos hoje essa experiência de isolamento social em que todas as pessoas têm de se recolher. Se durante um tempo éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados da ruptura ou da extinção do sentido da nossa vida, hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar a nossa demanda. Assistimos a uma tragédia de gente morrendo em diferentes lugares do planeta, a ponto de corpos serem transportados para enterros e incinerações em caminhões.
Essa dor talvez ajude as pessoas a responder se somos de fato uma humanidade. Nós nos acostumamos com essa ideia, que foi naturalizada, mas ninguém mais presta atenção no verdadeiro sentido do que é ser humano.
É como se tivéssemos várias crianças brincando e, por imaginar essa fantasia da infância, continuassem a brincar por tempo indeterminado. Só que viramos adultos, continuamos devastando o planeta, cavando um fosso gigantesco de desigualdades entre povos e sociedades. Há uma sub-humanidade que vive numa grande miséria, sem chance de sair dela – e isso também foi naturalizado.
Mentalidade doente
O presidente da República disse outro dia que brasileiros mergulham no esgoto e não acontece nada. O que vemos nesse homem é o exercicio da necropolítica, uma decisão de morte. É uma mentalidade doente que está dominando o mundo.
E temos agora esse vírus, um organismo do planeta, respondendo esse pensamento doentio dos humanos com um ataque à forma de vida insustentável que adotamos por livre escolha. Essa fantástica liberdade que todos adoram reivindicar, mas ninguém se pergunta qual o seu preço.
Esse vírus está discriminando a humanidade. Basta olhar em volta. O melão-de-são-caetano continua a crescer aqui do lado de casa. A natureza segue. O vírus não mata pássaros, ursos, nenhum outro ser, apenas humanos. Quem está em pânico são os povos humanos e seu mundo artificial, seu modo de funcionamento que entrou em crise.
É terrível o que está acontecendo, mas a sociedade precisa entender que não somos o sal da terra. Temos que abandonar o antropocentrismo. Há muita vida além da gente, não fazemos falta na biodiversidade. Pelo contrário.
Desde pequenos, aprendemos que há listas de espécies em extinção. Enquanto essas listas aumentam, os humanos proliferam, destruindo florestas, rios e animais. Somos piores do que a Covid-19.
Esse pacote chamado de humanidade vai sendo descolado de maneira absoluta desse organismo que é a Terra, vivendo numa abstração civilizatória que suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos. Oferece o mesmo cardápio, o mesmo figurino e, se possível, a mesma língua para todo mundo.
Os únicos núcleos que ainda consideram que precisam se manter agarrados nessa Terra são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina.
Esta é a sub-humanidade: caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes. Existe, então, um humanidade que integra um clube seleto que não aceita novos sócios. E uma camada mais rústica e orgânica, uma sub-humanidade, que fica agarrada na Terra. Eu não me sinto parte dessa humanidade. Eu me sinto excluído dela.”
Tudo é natureza
“Eu não percebo que exista algo que não seja natureza. Tudo é natureza. O cosmos é natureza. Tudo em que eu consigo pensar é natureza. Nós, a humanidade, vamos viver em ambientes artificiais produzidos pelas grandes corporações, que são as donas da grana. Agora esse organismo, o vírus, parece ter se cansado da gente. Parece querer se divorciar da gente como a humanidade quis se divorciar da natureza.
Ele está querendo nos ‘desligar’, tirando o nosso oxigênio. Quando a Covid-19 ataca os pulmões, o doente precisa de um respirador, senão ele morre. Quantas máquinas dessas vamos ter de fazer para 7 bilhões de pessoas no planeta? A nossa mãe, a Terra, nos dá de graça o oxigênio, nos põe para dormir, nos desperta de manhã com o sol, deixa os pássaros cantar, as correntezas e as brisas se moverem, cria esse mundo maravilhoso para compartilhar, e o que a gente faz com ele?
O que estamos vivendo pode ser a obra de uma mãe amorosa que decidiu fazer o filho calar a boca pelo menos por um instante. Não porque não goste dele, mas por querer lhe ensinar alguma coisa. ‘Filho, silêncio.’ A Terra está falando isso para a humanidade. E ela é tão maravilhosa que não dá uma ordem. Ela simplesmente está pedindo: ‘Silêncio’. Esse é também o significado do recolhimento.
Amor aos idosos
Quem dera eu pudesse fazer uma mágica para nos tirar desse confinamento, que pudesse fazer todos sentirem a chuva cair. É hora de contar histórias às nossas crianças, de explicar a elas que não devem ter medo. Não sou um pregador do apocalipse. O que tento é compartilhar a mensagem de um outro mundo possível. Para combater esse vírus, temos de ter primeiro cuidado e depois coragem.
Vemos algumas pessoas defenderem a manutenção da atividade econômica, dizendo que ‘alguns vão morrer’ e é inevitável. Esse tipo de abordagem afeta as pessoas que amam os idosos, que são avós, pais, filhos, irmãos. Não tem sentido que alguém, em sã consciência, faça uma comunicação pública dizendo ‘alguns vão morrer’.
É uma banalização da vida, mas também é uma banalização do poder da palavra. Pois alguém que fala isso está pronunciando uma condenação, tanto de alguém em idade avançada, como de seus filhos, netos e de todas as pessoas que têm afeto uns com outros. Imagine se vou ficar em paz pensando que minha mãe ou meu pai podem ser descartados. Eles são o sentido de eu estar vivo. Se eles podem ser descartados, eu também posso.”
O mundo em suspensão
“Desde muito tempo, a minha comunhão com tudo o que chamam de natureza é uma experiência que não vejo ser valorizada por muita gente que vive na cidade. Já vi pessoas ridicularizando: ‘ele conversa com árvore, abraça árvore, conversa com o rio, contempla a montanha’, como se isso fosse uma espécie de alienação. Essa é a minha experiência de vida.
Há muito tempo não programo atividades para ‘depois’. Temos de parar de ser convencidos. Não sabemos se estaremos vivos amanhã. Temos de parar de vender o amanhã. Penso naqueles versos do Carlos Drummond de Andrade: Stop. A vida parou ou foi o automóvel? Essa é uma parada para valer. O ritmo de hoje não é o da semana passada nem o do ano novo, do verão, de janeiro ou fevereiro. O mundo está agora na suspensão.
E não sei se vamos sair dessa experiência da mesma maneira que entramos. É como um anzol nos puxando para a consciência. Um tranco para olharmos para o que realmente importa.
Quem está apenas adiando compromissos, como se tudo fosse voltar ao normal, está vivendo no passado. O futuro é aqui e agora, pode não haver o ano que vem. Ninguém escapa, nem aquelas pessoas saindo de carro importado para mandar seus empregados voltarem ao trabalho, como se fossem escravos. Se o vírus pegá-los, eles podem morrer, igual a todos nós. Com ou sem Land Rover.
Obra profética
Em artigo que li sobre a pandemia, o sociólogo italiano Domenico De Masi cita a obra profética A peste, de Albert Camus: a peste pode vir e ir embora sem que o coração do homem seja modificado. Ele cita um trecho inteiro do romance em que o personagem diz algo assim: o bacilo que trouxe aquela mortandade, que parece que tinha sido dominado, podia continuar oculto em algum corrimão, janela, poltrona, só esperando o dia em que, infortúnio ou lição aos homens, a peste acordará seus ratos para mandá-los morrer numa cidade feliz.
Tomara que não voltemos à normalidade. Pois, se voltarmos, é porque não valeu nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro. Depois disso tudo, as pessoas não vão querer disputar de novo o seu oxigênio com dezenas de colegas num espaço pequeno de trabalho.
As mudanças já estão em gestação. Não podemos voltar àquele ritmo, ligar todos os carros e máquinas ao mesmo tempo. Seria como se converter ao negacionismo, aceitar que a Terra é plana e que devemos seguir nos devorando. Aí sim, teremos provado que a humanidade é uma mentira.”
O que é preciso sustentar?
“Como é que, ao longo da história, nós construímos a ideia de humanidade? Será que ela não está na base de muitas das escolhas erradas que fizemos, justificando o uso de tamanha violência contra a natureza e o meio ambiente terrestre?
A ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível.
Esse chamado para o seio da civilização sempre foi justificado pela noção de que existe um jeito de estar aqui na Terra. Como justificar que somos uma humanidade se mais de 70% dos humanos estão totalmente alienados do mínimo exercício de ser?
A modernização jogou essa gente do campo e da floresta para viver em favelas e em periferias, para virar mão de obra em centros urbanos. Essas pessoas foram arrancadas de seus coletivos, de seus lugares de origem, e jogadas nesse liquidificador chamado humanidade. Se não tiverem vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos.
Mito da sustentabilidade
Temos de refletir sobre o mito da sustentabilidade, inventado pelas corporações para justificar o assalto que fazem à nossa ideia de natureza. Durante muito tempo, fomos embalados com a história de que somos a humanidade. Enquanto isso, enquanto seu lobo não vem, fomos nos alienando desse organismo vivo de que somos parte – a Terra – e passamos a pensar que ele é uma coisa e nós, outra.
Os grandes centros do mundo são uma reprodução uns dos outros. Se formos para Tóquio, Berlim, Nova York, Lisboa ou São Paulo, veremos o mesmo entusiasmo em fazer torres incríveis, elevadores espiroquetas, veículos espaciais... Parece que estamos numa viagem com o Flash Gordon.
Recurso natural para quem? Desenvolvimento sustentável para quê? O que é preciso sustentar? O que é feito de nossos rios, florestas e paisagens? Precisamos ser críticos a essa ideia plasmada de humanidade homogênea, na qual há muito tempo o consumo tomou o lugar daquilo que antes era cidadania.
Não tem gente mais adulada hoje do que um consumidor. São adulados até o ponto de ficarem imbecis, babando. Então, para que ter cidadania, estar no mundo de uma maneira crítica e consciente, se você pode ser um consumidor? Tudo isso nos dispensa da experiência de viver numa terra cheia de sentido, numa plataforma para diferentes cosmovisões.”
A minha provocação
“Davi Kopenawa ficou 20 anos conversando com o antropólogo francês Bruce Albert para produzir uma obra fantástica, chamada A Queda do Céu: Palavras de um xamã yanomami. O livro tem a potência de nos mostrar como é possível que um conjunto de culturas e de povos ainda seja capaz de habitar uma cosmovisão. Habitar um lugar neste planeta que compartilhamos de uma maneira tão especial, em que tudo ganha um sentido.
As pessoas podem viver com o espírito da floresta, viver com a floresta, estar na floresta. Não estou falando do filme Avatar, mas da vida de 20 e tantas mil pessoas que habitam o território Yanomami, na fronteira do Brasil com a Venezuela.
Esse território está sendo assolado pelo garimpo e ameaçado pela mineração. Pelas mesmas corporações perversas que não toleram esse tipo de cosmos, o tipo de capacidade imaginativa e de existência que um povo originário como os Yanomami é capaz de produzir.
Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar.
O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então, pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. A minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim.
Paraquedas coloridos
Por que nos causa desconforto a sensação de estarmos caindo? A gente não fez outra coisa nos últimos tempos senão despencar. Cair, cair, cair. Então, por que estamos grilados agora com a queda?
Vamos pensar no espaço não como um lugar confinado, mas como o cosmos onde a gente pode despencar em paraquedas coloridos.
A gente resistiu expandindo a nossa subjetividade, não aceitando essa ideia de que somos todos iguais. Ainda existem aproximadamente 250 etnias que querem ser diferentes umas das outras no Brasil, que falam mais de 150 línguas e dialetos.
Cantar, dançar e viver a experiência mágica de suspender o céu é comum em muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas o existencial. Se existe uma ânsia por consumir a natureza, existe também uma por consumir subjetividades.
Então, vamos vivê-las com a liberdade que formos capazes de inventar. Não botar ela no mercado. Já que a natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável, vamos, pelo menos, ser capazes de manter nossas subjetividades, visões e poéticas sobre a existência.”
O desastre do nosso tempo
“Talvez estejamos muito condicionados a uma ideia de ser humano e a um tipo de existência. Se a gente desestabilizar esse padrão, talvez a nossa mente sofra uma espécie de ruptura, como se caíssemos num abismo.
Quem disse que a gente já não caiu? Houve um tempo em que o planeta que chamamos Terra juntava geograficamente os continentes todos numa grande Pangeia. Se olhássemos lá de cima do céu, tiraríamos uma fotografia completamente diferente do globo.
Quem sabe se, quando o astronauta Yuri Gagarin disse ‘a Terra é azul’, ele não fez um retrato ideal daquele momento para essa humanidade que nós pensamos ser. Ele olhou com o nosso olho, viu o que a gente queria ver. É como se tivéssemos feito um photoshop na memória coletiva planetária, entre a tripulação e a nave, onde a nave se cola ao organismo da tripulação e fica parecendo uma coisa indissociável.
É como parar numa memória confortável, agradável, de nós próprios, por exemplo, mamando no colo da nossa mãe: uma mãe farta, próspera, amorosa, carinhosa, nos alimentando forever. Um dia ela se move e tira o peito da nossa boca. Aí, a gente dá uma babada, reclama porque não está vendo o seio da mãe. De repente, o que a mãe fez foi dar uma viradinha para pegar um sol. Mas como estávamos tão acostumados, a gente só quer mamar...
Todas histórias antigas chamam a Terra de Mãe, Pacha Mama, Gaia. Uma deusa perfeita e infindável, fluxo de graça, beleza e fartura. É a referência de uma provedora maternal. Não tem nada a ver com a imagem masculina ou do pai. Todas as vezes em que a imagem do pai rompe nessa paisagem é sempre para depredar, detonar e dominar.
Coreografia estranha
Devíamos admitir a natureza como uma imensa multidão de formas, incluindo cada pedaço de nós, que somos parte de tudo: 70% de água e um monte de outros materiais que nos compõem. E nós criamos essa abstração de unidade, o homem como medida das coisas, e saímos por aí atropelando tudo...
Esse contato com outra possibilidade implica escutar, sentir, cheirar, inspirar, expirar aquelas camadas do que ficou fora da gente como ‘natureza’, mas que por alguma razão ainda se confunde com ela.
Tem alguma coisa dessas camadas que é quase-humana: uma camada identificada por nós que está sendo exterminada. Ela é formada por milhares de pessoas que insistem em ficar fora dessa dança civilizada, do controle do planeta. E por dançar uma coreografia estranha, são tiradas de cena por epidemias, pobreza, fome, violência.
O simples contágio do encontro entre humanos fez com que essa parte da população desaparecesse por um fenômeno que depois se chamou epidemia. Um sujeito que saía da Europa e descia numa praia tropical largava um rastro de morte por onde passava. Não sabia que era uma peste ambulante, uma guerra bacteriológica em movimento. Tampouco o sabiam as vítimas que eram contaminadas.
Para os povos que receberam aquela visita e morreram, o fim do mundo foi no século XVI. Assim como estamos vivendo hoje o desastre do nosso tempo.
Que humanidade, enfim, queremos sobre a Terra? Se ainda não sabemos, a natureza parece saber e se atualiza sempre, desde que o planeta foi criado. Não à toa, o novo coronavírus não mata uma única borboleta. Nem a borboleta azul que Hugo Werneck tanto amava. Só humanos!”
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