Anarquismo Social ou Anarquismo de Estilo De Vida
Num sentido bastante concreto, eles [os anarquistas de estilo de vida] não são mais socialistas – defensores de uma sociedade libertária comunalmente orientada – e abstêm-se de qualquer comprometimento com um confronto social organizado e programaticamente coerente contra a ordem existente.
Aventurism o ad hoc, ostentação pessoal, uma aversão à
teoria estranhamente similar às tendências anti-racionais do
pós-modernismo, celebrações de incoerência teórica...
Num sentido bastante concreto, eles [os anarquistas de estilo de vida] não são mais socialistas – defensores de uma sociedade libertária comunalmente orientada – e abstêm-se de qualquer comprometimento com um confronto social organizado e programaticamente coerente contra a ordem existente.
Aventurism
Anarquismo Social ou Anarquismo de Estilo De Vida
Excertos do livro Anarquismo Social ou Anarquismo de Estilo de Vida: um abismo intransponível de Murray Bookchin, no prelo.
ANARQUISMO SOCIAL OU ANARQUISMO DE ESTILO DE VIDA
EXCERTOS
Murray Bookchin
Murray Bookchin
AUTONOMIA INDIVIDUAL E LIBERDADE SOCIAL
Por cerca de dois séculos, o anarquismo –
um corpo extremamente ecumênico de idéias antiautoritárias –
desenvolveu-se na tensão entre duas tendências basicamente
contraditórias: um comprometimento pessoal com a autonomia individual e
um comprometimento coletivo com a liberdade social. Essas tendências
nunca se harmonizaram na história do pensamento libertário. De fato,
para muitos do século passado, elas simplesmente coexistiam dentro do
anarquismo como uma crença minimalista de oposição ao Estado, ao invés
de uma crença maximalista que articulasse o tipo de nova sociedade que
tinha de ser criada em seu lugar.(…)
Com a emergência do anarco-sindicalismo e do anarco-comunismo
nos fins do século XIX e início do século XX, a necessidade de se
resolver a tensão entre as tendências individualista e coletivista
tornou-se essencialmente obsoleta. O anarco-individualismo foi, em
grande medida, marginalizado pelos movimentos operários socialistas de
massa, dos quais muitos anarquistas consideravam-se a esquerda. Em uma
época de violentos levantes sociais, marcada pelo surgimento de um
movimento de massas da classe trabalhadora que teve seu auge nos anos
1930 e na Revolução Espanhola,
os anarco-sindicalistas e anarco-comunistas, não menos que os
marxistas, consideravam o anarco-individualismo um exotismo
pequeno-burguês. Eles não raro o atacavam, de maneira bastante direta,
acusando-o de ser um capricho de classe-média, muito mais radicado no
liberalismo do que no anarquismo.(…)
Raramente os anarco-individualistas
exerceram influência sobre a nascente classe operária. Eles expressavam
sua oposição de forma pessoal e peculiar, especialmente em panfletos
inflamados, comportamentos abusivos, e estilos de vida extravagantes nos
guetos culturais do fin de siècle de Nova York, Paris e Londres. Como
uma crença, o anarquismo individualista permaneceu, em grande medida, um
estilo de vida boêmio, mais evidente em suas reivindicações de
liberdade sexual (“amor livre”) e no fascínio pelas inovações na arte, no comportamento e nas vestimentas.(…)
Nos tradicionalmente individualistas e
liberais Estados Unidos e Inglaterra, os anos 1990 estão transbordando
de auto-intitulados anarquistas que – descontando a retórica radical
exibicionista – vêm cultivando um anarco-individualismo moderno que
chamarei de anarquismo de estilo de vida. Suas preocupações com o ego,
sua unicidade e seus conceitos polimorfos de resistência vêm
constantemente desgastando o caráter socialista da tradição
libertária.(…)
ANARQUISMO DE ESTILO DE VIDA
Num sentido bastante concreto, eles [os
anarquistas de estilo de vida] não são mais socialistas – defensores de
uma sociedade libertária comunalmente orientada – e abstêm-se de
qualquer comprometimento com um confronto social organizado e
programaticamente coerente contra a ordem existente.(…)
Aventurismo ad hoc, ostentação pessoal,
uma aversão à teoria estranhamente similar às tendências anti-racionais
do pós-modernismo, celebrações de incoerência teórica (pluralismo), um
compromisso basicamente apolítico e antiorganizacional com a imaginação,
o desejo, o êxtase e um encantamento da vida cotidiana intensamente
voltado para si mesmo refletem o preço que a reação social cobrou do
anarquismo euro-americano nas últimas duas décadas.(…)
O ego – mais precisamente sua encarnação
em vários estilos de vida – tornou-se uma idéia fixa para muitos
anarquistas pós-1960, que estão perdendo contato com a necessidade de
uma oposição organizada, coletiva e programática à ordem social
existente. “Protestos” sem firmeza, traquinagens sem objetivo, a
afirmação dos próprios desejos, e uma “recolonização” muito pessoal da
vida cotidiana, são um paralelo aos estilos de vida psicoterápicos, new
age, auto-orientados de baby boomers entediados e membros da Geração
X.(…)
O anarquismo de estilo de vida, assim
como o individualista, aporta um desdém para com a teoria, de
ascendências místicas e primitivistas geralmente muito vagas,
intuitivas, e mesmo anti-racionais, analisadas friamente.(…)
Sua linha ideológica é basicamente
liberal, fundamentada no mito do indivíduo completamente autônomo cujas
reivindicações da própria soberania se valem de axiomáticos “direitos
naturais”, “valores intrínsecos”, ou, em um nível mais sofisticado, do
eu transcendental kantiano produtor de toda a realidade cognoscível.
Essas tradicionais visões vêm à tona no “eu” ou no único (ego) de Max
Stirner, que tem em comum com o existencialismo a tendência a absorver
toda a realidade em si mesmo, como se o universo girasse em torno das
escolhas do indivíduo auto-orientado.(…)
Ao negar as instituições e a democracia,
o anarquismo de estilo de vida isola-se da realidade social para que
assim possa esfumar-se com uma fútil raiva ainda maior, continuando, por
meio disso, a ser uma travessura subcultural para ingênuos jovens e
entediados consumidores de roupas pretas e pôsteres excitantes.(…)
O poder, que sempre existirá, pertencerá
ou ao coletivo, em uma democracia cara-a-cara e claramente
institucionalizada, ou aos egos de poucos oligarcas que produzirão uma
“tirania das organizações sem estrutura”.(…)
O isolamento do anarquismo de estilo de
vida e seus fundamentos individualistas devem ser considerados
responsáveis por restringir o desenvolvimento do ingresso de um
potencial movimento libertário de esquerda numa esfera pública cada vez
mais reduzida.(…)
A bandeira negra, que os revolucionários
defensores do anarquismo social levantaram nas lutas insurrecionais na
Ucrânia e Espanha, torna-se agora um “sarongue” da moda, para deleite de
chiques pequeno-burgueses.(…)
UM TIPO DE ANARQUISMO DE ESTILO DE VIDA: A TAZ DE HAKIN BEY
A T.A.Z. é tão passageira, tão
evanescente, tão inefável em contraste com o Estado e a burguesia
formidavelmente estáveis que “assim que a T.A.Z. é nomeada (…) ela deve
desaparecer, ela vai desaparecer (…) e brotará novamente em outro
lugar”. A T.A.Z., de fato, não é uma revolta, mas sim uma simulação, uma
insurreição igualmente vivida na imaginação de um cérebro juvenil, uma
retirada segura para a irrealidade. Entretanto, Bey declama: “Nós a
recomendamos [a T.A.Z.], pois ela pode fornecer a qualidade do
enlevamento, sem necessariamente [!] levar à violência e ao martírio”.
Mais precisamente, como um happening de Andy Warhol, a T.A.Z. é um
evento passageiro, um orgasmo momentâneo, uma expressão fugaz da “força
de vontade” que é, de fato, uma evidente impotência em sua capacidade de
deixar qualquer marca na personalidade, subjetividade ou mesmo na
auto-formação do indivíduo, e menos ainda em modificar eventos ou a
realidade. (…)
A burguesia não tinha nada a temer com
essas declamações de estilo de vida. Com a sua aversão pelas
instituições, organizações de massa, sua orientação amplamente
subcultural, sua decadência moral, sua celebração da transitoriedade e
sua rejeição de programas, esse tipo de anarquismo narcisista é
socialmente inócuo e, com freqüência, meramente uma válvula segura para o
descontentamento com a ordem social dominante. Com Bey, o anarquismo de
estilo de vida foge de toda militância social significativa e do firme
compromisso com os projetos duradouros e criativos, quando se dissolve
nas queixas, no niilismo pós-modernista e na confusão. O senso
nietzschiano de superioridade elitista.
O preço que o anarquismo pagará se
permitir que este absurdo substitua os ideais libertários de um período
anterior será enorme. O anarquismo egocêntrico de Bey, com seu
afastamento pós-modernista em direção à “autonomia” individual, às
“experiências-limite” foucaultianas, e ao êxtase neo-situacionista,
ameaça tornar a palavra anarquismo política e socialmente inocente – uma
simples moda para o gozo dos pequenos burgueses de todas as idades.
ANARQUISMO SOCIAL
[Até hoje] os anarquistas não criaram
nem um programa coerente, nem uma organização revolucionária para
proporcionar uma direção ao descontentamento da massa que a sociedade
contemporânea está criando.(…)
O anarquismo social, a meu ver, é feito
de uma essência fundamentalmente diferente, herdeira da tradição
iluminista, com a devida consideração aos seus limites e imperfeições.
Dependendo de como se define a razão, o anarquismo social celebra a
mente humana pensante sem, de forma alguma, negar a paixão, o êxtase, a
imaginação, o divertimento e a arte. Contudo, ao invés de
materializá-las em categorias nebulosas, ele tenta incorporá-las na vida
cotidiana. O anarquismo social está comprometido com a racionalidade,
embora se oponha à racionalização da experiência; com a tecnologia,
embora se oponha à “mega-máquina”; com a institucionalização social,
embora se oponha ao sistema de classes e à hierarquia; com uma política
genuína, baseada na coordenação confederal de municipalidades ou
comunas, pelo povo, com democracia direta cara-a-cara, embora se oponha
ao parlamentarismo e ao Estado.
Essa “comuna das comunas”, para utilizar
um slogan tradicional das revoluções anteriores, pode ser indicada, de
maneira apropriada, como sendo o comunalismo. No entanto, os oponentes
da democracia como “sistema”, ao contrário, descrevem a dimensão
democrática do anarquismo como uma administração majoritária da esfera
pública. Conseqüentemente, o comunalismo busca a liberdade, ao invés da
autonomia, nesse senso que eu a contrapus. Ele rompe categoricamente com
o ego boêmio, liberal, psico-pessoal stirneriano, por este ser um
soberano encerrado em si mesmo, afirmando que a individualidade não
emerge ab novo, enfeitada no nascimento com “direitos naturais”, e vê a
individualidade, em grande medida, como o trabalho em constante mudança
do desenvolvimento social e histórico, um processo de autoformação que
não pode ser petrificado pelo biologismo e nem preso por dogmas
limitados temporariamente.(…)
A democracia não é antitética ao
anarquismo; o critério de decisão pela maioria e as decisões não
consensuais também não são incompatíveis com uma sociedade
libertária.(…)
O aspecto mais criativo do anarquismo
tradicional é o seu comprometimento com quatro princípios básicos: uma
confederação de municipalidades descentralizadas, uma firme oposição ao
estatismo, uma crença na democracia direta e um projeto de uma sociedade
comunista libertária.(…)
Em resumo, o anarquismo social deve
afirmar, resolutamente, suas diferenças com o anarquismo de estilo de
vida. Se um movimento social anarquista não pode traduzir seus quatro
princípios – confederalismo municipal, oposição ao estatismo, democracia
direta e, finalmente, o comunismo libertário – em uma viva prática, em
uma nova esfera pública; se esses princípios se enfraquecem como suas
memórias de lutas passadas em declarações e encontros cerimoniais; pior
ainda, se eles são subvertidos pela Indústria do Êxtase “libertária” e
pelos teísmos asiáticos quietistas, então seu centro socialista
revolucionário terá de ser restabelecido sob um novo nome.
Certamente, já não é mais possível, do
meu ponto de vista, chamar alguém de anarquista sem adicionar um
adjetivo qualificativo que o distinga dos anarquistas de estilo de vida.
Minimamente, o anarquismo social está radicalmente em desacordo com o
anarquismo que é focado no estilo de vida, a invocação neo-situacionista
ao êxtase e a soberania do ego pequeno burguês que cada vez contrai-se
mais. Os dois divergem completamente em seus princípios de definição –
socialismo ou individualismo. Entre um corpo revolucionário comprometido
de idéias e prática, por um lado, e o anseio vagabundo para o êxtase e a
auto-realização privados de outro, nada pode haver em comum. A mera
oposição do Estado pode bem unir o lúmpem fascista com o lúmpem
stirneriano, um fenômeno que não está sem seus precedentes históricos.
PERSPECTIVAS PREOCUPANTES
A menos que eu esteja gravemente errado –
e espero estar – os objetivos sociais e revolucionários do anarquismo
estão sofrendo um desgaste de longo alcance ao ponto em que a palavra
anarquia se tornará parte do elegante vocabulário burguês do século XXI –
desobediente, rebelde, despreocupado, mas deliciosamente inofensivo.
* Tradução e seleção: Felipe Corrêa
* Trecho de Anarquismo Social ou Anarquismo de Estilo de Vida: um abismo intransponível.