Para o frei Henri Burin des Roziers não há reforma agrária porque a propriedade da terra é imposta pela violência
De Paris
Em
seu quarto no convento Saint-Jacques, em Paris, a 12 mil quilômetros de
Rio Maria, pequena cidade do Pará onde defendeu na Justiça inúmeros
camponeses sem-terra, o frade dominicano e advogado Henri Burin des
Roziers, 85 anos, recebe CartaCapital para
falar da sua experiência no Brasil, onde foi morar em 1978. Rio Maria,
campeã de assassinatos por encomenda de líderes sindicais, é conhecida
como “a terra da morte anunciada” e, por isso, virou símbolo da luta camponesa no Pará.
O “advogado dos sem-terra” pertence
a uma tradicional família francesa. Estudou em Cambridge e fez
doutorado na Sorbonne, antes de se tornar alvo de matadores
profissionais. Em 2005, recebeu o Prêmio Internacional dos Direitos
Humanos, na França, onde, em 1994, fora condecorado com a Légion
d’Honneur.
CartaCapital: Segundo
a Comissão Pastoral da Terra, entre 1985 e 2011, 1.610 pessoas foram
assassinadas no Brasil em conflitos de terras. Camponeses, padres,
freiras e advogados que defendiam os camponeses. Entre os estados
brasileiros, o Pará é o mais violento, com 645 mortos entre 1985 e 2013.
Por que essa violência?
Henri Burin des Roziers: Certamente,
por causa da impunidade. Foi por isso que, quando fui enviado a Rio
Maria, trabalhei contra a impunidade dos pistoleiros e seus mandantes,
que tinham matado sindicalistas. Em Rio Maria, tinham assassinado João
Canuto, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, tinham
ameaçado o outro presidente, que teve de fugir, e depois assassinaram
quem o sucedeu, Expedito Ribeiro de Souza. E nada acontecia. Por isso,
passei grande parte do meu tempo no Brasil tentando agir para que a
Justiça julgasse e condenasse os assassinos. Essa impunidade diminuiu um
pouco, alguns foram julgados.
CC: O senhor obteve vitórias. Como se explica a violência em torno da terra no Brasil?
HBR: Eles
continuaram a assassinar, claro, até hoje o fazem. Mas não da mesma
forma sistemática. Creio que por causa do nosso trabalho. A Justiça,
hoje no Brasil, ainda está ligada às classes dominantes. Na época, eles
compravam juízes. Obtivemos condenações formidáveis em Rio Maria, mas na
hora da execução da pena tivemos problemas por causa do conluio da
Justiça com os ricos. Apesar de tudo, acho que houve pequenos avanços.
No País, há uma cultura da violência, sobretudo no Norte. Ela se explica
pela impunidade, mas também porque está na estrutura da sociedade. Os
que têm poder na região são violentos e a propriedade da terra é uma
realidade que se impõe pela violência.
CC: A reforma agrária no Brasil é impossível? Por que nunca foi realizada?
HBR: Creio
que há uma razão histórica. Na história do Brasil, o problema da
propriedade e da terra é visceral. Talvez por causa das Capitanias
Hereditárias e das Sesmarias, no início da colonização. Os primeiros
colonos recebiam o poder a partir da terra. Desde a origem, o problema
era fundamental. A terra como símbolo de riqueza e poder.
CC: Por que tanto Lula quanto Dilma Rousseff não ousaram fazer a reforma agrária?
HBR: Antes
deles houve quem tentasse. O golpe de Estado de 1964 aconteceu em parte
por causa das Ligas Camponesas de Francisco Julião. O problema da
propriedade da terra no Brasil é explosivo.
CC: Como
o senhor viu a nomeação da representante do agronegócio, grande
latifundiária, Kátia Abreu, para o Ministério da Agricultura ?
HBR: É
imcompreensível. Dilma Rousseff foi eleita com muita mobilização dos
Sem-Terra, do MST. Nomeou essa mulher para sobreviver, para ter um apoio
político. Dilma está fragilizada. Totalmente envolvida em um jogo
difícil. Agora é o poder pelo poder. É o que se dá com o PT. No Partido
dos Trabalhadores, salvo algumas exceções, o conjunto dos parlamentares
luta para manter o poder. Não têm mais preocupações ideológicas, não se
empenham por reformas. Dilma Rousseff não tem mais nada a ver com a
Dilma Rousseff de Lula, quando chegou ao poder. Mas vale dizer que era
uma tecnocrata, não está na origem do PT.
CC: Depois
do assassinato da freira Dorothy Stang, em 2005, o senhor passou a ser
protegido por policiais. Por que o senhor era um alvo?
HBR: Porque
trabalhei no Brasil por muito tempo como advogado, principalmente como
advogado de acusação, se posso dizer assim, tentando levar à Justiça os
matadores de camponeses e seus mandantes. Levamos à Justiça assassinos
de camponeses e líderes do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio
Maria. Nos anos 80, os fazendeiros da região tinham decidido que o
sindicato teria de fechar. Para tanto, mandaram matar, em dezembro de
1985, seu primeiro presidente, João Canuto. Depois mataram seus dois
filhos, José e Paulo. Não mataram a viúva porque não a encontraram. O
sucessor de Canuto teve de fugir para não ser morto. Outro camponês,
Expedito Ribeiro de Souza, assumiu a presidência do sindicato e foi
assassinado em 1991. Depois, assassinaram um diretor do sindicato, Brás
de Oliveira. Um companheiro dele conseguiu escapar, foi sequestrado e
mandado para longe de Rio Maria.
CC: Como defensor dos sem-terra, o senhor passou a ser um alvo?
HBR: Lembro
que, já ameaçado de morte, Expedito foi convidado, em dezembro de 1990,
a falar num grande congresso da CUT, em São Paulo. Fez um discurso
emocionante, diante de mil trabalhadores. Disse que era pai de nove
filhos e, como presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio
Maria, estava ameaçado de morte. Todos os amigos lhe diziam para ir
embora, mas ele fora eleito presidente e não podia abandonar os
companheiros. OLe Monde Diplomatique fez uma matéria sobre esse encontro na CUT, cujo título era: “Esse homem vai ser assassinado”. E foi, em fevereiro de 1991.
CC: O senhor estava lá?
HBR: Não,
eu estava deixando o Brasil e indo para a Guatemala. Com o assassinato
de Expedito, a Comissão Pastoral da Terra começou a procurar um
advogado. Havia advogados como Luiz Eduardo Greenhalgh, que naquele
tempo era formidável. Depois, deixou-se seduzir pelo poder,
infelizmente. Tinha sido advogado de presos políticos na ditadura. Havia
também Márcio Thomaz Bastos, depois ministro da Justiça do presidente
Lula. Esses advogados estavam a serviço da causa, mas diziam que do Rio e
de São Paulo não podiam acompanhar os acontecimentos em Rio Maria. No
entanto, se não se fizesse algo imediatamente, o processo estaria
comprometido. Aceitei então ser o advogado. E assim fui para Rio Maria. E
fui aos poucos retomando os casos já enterrados, inclusive o de João
Canuto.
CC: O senhor foi para o Brasil em 1978. Por que o Brasil?
HBR: Em
1969, eu fui para o convento Saint-Jacques, onde estavam alguns dos
dominicanos brasileiros exilados pela ditadura. Tomamos posição clara na
defesa daqueles que estavam presos, e que foram, inclusive, torturados.
A luta armada sequestrou o embaixador Giovanni Bucher, exigiu a
libertação dos presos e foi assim que frei Tito de Alencar e outros
foram soltos. Frei Tito veio para o Saint-Jacques
e também foi aqui que conheci o dominicano Magno Vilela. Muito
inteligente, ele foi determinante para que eu decidisse trabalhar no
Brasil. Decidi ir em
1976, mas as autoridades brasileiras recusaram meu visto. Os
dominicanos me diziam que eu nunca conseguiria. Cogitei então ir para o
Peru, mas, quando estava para embarcar, já em 1978, soube que o visto
fora dado. O papa Paulo VI morrera e, para ser bem-vista, a ditadura,
que defendia a candidatura do Núncio Apostólico no Brasil, Sebastiano
Baggio, resolveu dar os vistos aos quatro dominicanos franceses que
estavam na lista de espera. Foi eleito João Paulo I, morreu logo depois.
Em seguida, esse triste João Paulo II foi eleito papa. Fui para o
Brasil e não para o Peru.
CC: O senhor foi para a Amazônia?
HBR: Primeiramente,
para o Rio, depois visitei Fortaleza, Belo Horizonte, São Paulo e
Brasília. Aprendi o português. Quando conheci Magno Vilela, no convento
Saint-Jacques, já tinha experiência de jurista na região de Haute
Savoie. Ele me disse que essa experiência seria útil nas lutas populares
no Brasil. Depois dessa conversa é que fiz meu pedido para o Brasil.
CC: Em
2013, depois da eleição do papa Francisco, o senhor disse, em São
Paulo: “O papa deve mudar de vida, parar de se comportar como um
príncipe. Deve ser um homem de diálogo no interior da Igreja e deve
acabar com esse aspecto de autoridade absoluta”. O que acha agora?
HBR: Até
agora, estou feliz. Nos sentíamos no deserto, perseguidos durante 40
anos sob o poder de João Paulo II e do triste Ratzinger-Bento XVI. Com
Francisco, a gente se sente reabilitado. O que vi até agora me dá
esperança. Sobretudo o discurso que ele fez em Roma para os movimentos
populares. Disse que era preciso fazer uma revolução. Esperamos
resultados. Fico, porém, um pouco apreensivo, sua sucessão me preocupa
muito.
CC: Numa
entrevista a um jornalista francês o senhor mencionou dom Helder Câmara
como uma figura importante no seu percurso e falou dele com admiração. O
senhor o conheceu? Como inspirou seu trabalho?
HBR: Nunca
o encontrei pessoalmente. Mas a admiração vem de longe. Quando eu era
capelão dos estudantes aqui em Paris, nos anos 1960, dom Helder, o bispo
vermelho dos pobres, vinha frequentemente à Europa e passava sempre por
Paris, onde fazia conferências que atraíam multidões. Ele denunciava a
pobreza terrível do Brasil, das crianças do Nordeste. Era o bispo dos
pobres, ele lembrava que naquele país de opulência havia uma grande
pobreza. A gente mandava os estudantes irem ouvi-lo e depois fazíamos
debates. Ele ficou como uma referência. Seu impacto no público francês
era muito forte. Eu lia o que ele dizia e fazia. Ele criou um excelente
centro de direitos humanos no Recife, mas outro bispo destruiu o que ele
fez.
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